Thursday, April 20, 2006

Para Julia Ziviani

A propósito da defesa de doutorado de Julia Ziviani Vitiello
Dança: Memória dos corpos cênicos
FE- Unicamp 2004-09-10
Ontem , entre colunas e árvores..

Desço a rua Aimorés até encontrá-la com Afonso Pena, deixo minha filha na escola e ando a pé até o parque municipal..despacho um livro no Correio, na agencia central..entro no palácio das artes até o teatro e fiquo lá alguns instantes, tomando água para refrescar-me do calor de setembro...no grande teatro do Palácio apresenta-se o Grupo Corpo...um grande banner vermelho e negro estende-se pelos metros da fachada de mármore modernista...a bailarina escorrega a perna na diagonal, enquanto seu parceiro sustenta-a pelos ombros...o vestido vermelho contra a o palco negro, negro...o sapato de salto alto encosta na diagonal do retângulo plástico , um grande cartaz...os olhos da dançarina-atriz estão caiados de forte verde e ouro, as pálpebras baixas... pudéssemos ver as linhas deste desenho e seria como uma árvore que, surpresa e ressequida por toda sorte de ações do tempo e da matéria, ferida, se resigna a gravidade e converte-se subitamente num braço de rio lamacento, tinto da argila e de minério de ferro..
A bailarina árvore do cartaz desdém deste desenho, porque já o contém...Nós, entretando, os comuns, somos os portadores de uma paisagem sempre desejada por quem habita a cidade. Sempre invejosos do desenho-arvore-dança-rio que ela ali no cartaz mostra todos os dias sem repouso, os passageiros dos ônibus, os pedestres e os trabalhadores dos correios, do Conservatório, da sapataria e da copiadora Universal calam-se e desejam montanhas, águas, árvores generosas e uma vida menos cruel. Porque a dança de quem dança no tempo e na representação nos faz sentir a pequenez de nosso gestos cotidianos e olha para nós com o desdém daqueles bailarinos que sabem comprimir o espaço e o tempo só com o uso das mãos.

Domingo, há pouco mais de um mês...
Entro no Teatro de Ouro Preto pela portinha estreita, porta de madeira engrossada por tantas demãos de tinta...entro porque o calor me afasta da escadaria da igreja de nossa senhora do Carmo, onde estava desenhando um anjinho emburrado na pedra...o teatro é sempre mais fresco e escuro...dai galgo os degraus da lateral escura e sento-me na fileira mais distante...lá no palco, filetes de luz pingam aqui e ali pontos bem brilhantes de pura prata envelhecida...são os minúsculos pontos do telhado que, vazando luz e -quem sabe - água, pontilham de estrelas diurnas o palco enevoado. Minha filha aproveita e corre escadinha acima e abre os braços, girando o corpo entre os finos cordéis de luz que nascem do alto...gira e gira, e onde os braços tocam a luz, lampeja uma ou outra estrela falsa...no palco, entre místicos cordões de luz, arrasta os pés sem ruído e rodopia sem som para não chamar a atenção das zeladoras entretidas em conversas...seus pés despertam a poeira do palco que adensa a luz nascida do telhado fragilizado..e uma névoa tímida e filigranada a envolve ,como a fina teia dos acontecimentos fugazes...
Isto durou aqui 10 minutos, pouco menos..Terei sonhado?

Certas imagens não abandonam nossos olhos...


Há três semanas, na Toscana
Catedrais na paisagem...os castelinhos de pedra descascada estão ladeados pelas videiras carregadas da uva pronta para a vendemia..os cachos são brutos, estão pesados e sem forma...pendem heroicamente e voltam-se para o céu...os trabalhadores retiram cuidadosamente as folhas acima dos cachos para que toda a uva receba o sol do verão generoso...
A paisagem feminina desenhada por tanto tempo já é assim...a terra nem mesmo se lembra se algum dia já foi outra coisa senão uvas, limões, flores e mirto...no paese mais próximo compra-se o pão toscano sem sal, a manteiga branca, o tomate doce...dois litros de um bom chianti , vinho santo e cantucci...atravessa-se a ponte da piazza e no rio de águas fininhas nadam peixes de bom tamanho...patos gordos de penas brilhantes dormem a sombra...
A estrada pela manhã cheira a rosmaninho, o alecrim...a groselha e o mirtilo esparramam-se nas encostas, cobertas de frutas e espinhos...flores miúdas de cabo longo e cores frágeis cobrem a estrada, tem a forma de uma estrela de cinco pontas e balançam-se conforme roçam na minha roupa...
De outro paesino ouve-se o sino de uma igrejinha, ao lado do café...dois velhos regam o jardim de campânulas iridescentes...um casal com crianças passa e suas bicicletas amarelas desenham no ar uma barra flamejante...um lençol azul clarinho se enrosca nas sebes frouxas de uma casa de janelas moles...
No teatro da paisagem do mundo, erguem-se os ciprestes, as colunas naturais...Tão juntas como no Vaticano ou separadas como no templo em Agrigento, arruinadas como as que toquei no palco de Taormina...as árvores de galhos invisíveis, são as chamas escuras e frias de uma paisagem da memória, ciprestes mulheres, colunas de um teatro natural. Entre os arcos baixos da tessitura desenhada pelas plantações, levitados pelo relevo suave, erguem-se rumo ao teto celeste. Como em Vicenza, como em Palermo, como em Segesta....

Cara Julia, eu estive vagando em corpo e espírito pelos lugares que você descreveu em sua escritura. Escrever sobre uma imagem é uma imagem? Para mim, nestes dias em que acompanhei seus escritos , as descrições- a descriptio, a landchap- a descrição de um território e seus detalhes- foram suas palavras as imagens agentes que fizeram-me entrar em reminiscência e ver aqui onde agora estou e escrevo as fortes ondas de emoção ao deparar-me com lugares fantásticos e familiares. Digo familiares pois experimentei vivamente esta desconcertante sensação de fazer parte dos lugares visitados..( no último dia 18 de agosto, fui visitar os arcos e colunas da escola de Atenas na Stanza di Rafaello, do Museu Vaticano...fiquei bem pertinho dos pés dos filósofos, pintores e outros personagens afrescados...tive a nítida sensação de nostalgia, como seu eu tivesse “caído” da pintura, naquele exato instante...fui invadida por uma grande saudade de quando eu era uma representação de mim! Enfim...)
Voltando aos escritos...Sua tese causou-me melancolia e nostalgia...refiro-me a melancolia das pinturas de Giorgione , os jovens empalidecidos e de pele fria, longas mãos que tocam numa maçã, um livro, um pedaço de papel..por muito tempo vaguei pela minha nova casa em Belo Horizonte, que se encheu de recordações da outra casa através de objetos e cheiros que lá coloquei... Receava até mesmo começar esta escrita e confesso que acabo de terminá-la agora, em meu coração... Portanto, peço desculpas se esta minha escritura te pareça truncada e pouco legível, farei cá um esforço para fazer-me entender..
A melancolia de Dante, o pântano onde estão imersos os estigmatizados pelo sentimento de futuro, sempre contemplando o passado...assim demorei a escrever...
Para poder sentar-me e escrever, banhei-me no Lettes e dei graças por poder esquecer...esquecer para lembrar das outras coisas que queria te dizer hoje...se eu não me esquecesse das coisas sempre impressionantes – ainda agora que retornei da Sardegna selvagem e da Toscana “penteada”- não poderia estar aqui. Troco com muito esforço o pântano pelo rio, e nas águas - água , sua metáfora mais verdadeira!- vislumbro mais energia para escrever.
Vou agora ao teu texto, como se dele tivesse me afastado...sua tese esta agora do lado direito do computador, numa mesinha improvisada onde coloquei outras coisas que separei para me lembrar...às minhas costas estão pacotinhos de presentes para os colegas do Olho, e pregado na parede o bilhete de ingresso no Museu Vaticano e da Pinacoteca di San Gimignano..dai cercada de vozes, descrições e imagens, sigo na escritura e escolho dois momentos a guisa de comentário...
(em verdade poderia falar sem fim...poderia falar de uma maneira a dividir impressões mais diversas) mas escolhi assim para poder a qualquer minuto parar de falar e começar a ouvir..
(Antes de mais nada....vivi metade até então desta vida em São Paulo...sempre que podia estava na quarta fila para assistir o Corpo de Baile do Teatro Municipal...tinha 16 anos e minha amiga e vizinha Áurea, a filha do seu Durval, dançava lá... vi muitos espetáculos que custavam tão pouco...saía com a alma em festa...das coreografias de Luis Arrieta lembro-me das Quatro estações de Vivaldi com bailarinos vestidos do mais denso vermelho e o palco escurecido de azul profundo...eu me lembro de ter lembrado de outros lugares nos quais tinha certeza de já ter estado...teria eu sonhado durante o espetáculo??)

Primeiro comentário- aqui estou imitando Santo Ambrósio eu acho, porque estou estudando estes tratadistas e assim imito todos- de quando você me trouxe para mais perto de seu texto, o primeiro momento, na pagina 18 quando você escreve sobre a disciplina e da prática: “ assim o exercitar-se quase à exaustão sem duvida pode trazer as habilidades técnicas da linguagem, mas também adquire outra significação” e mais abaixo “ Disciplina e inovação em partes iguais nos levam a uma liberdade artística de corpo e espírito”.
Concordo totalmente com você, mas daí lendo seu texto eu vi a prática da gravura, nos meus idos de 1988, no ateliê de gravura do IA. Havia a disciplina dos materiais, os tempos dos ácidos, a correta pressão na prensa e os papeis adequados...também havia o desenho e sua transposição para a chapa de cobre, as horas lentas da gravação com a ponta seca...
Nestas horas de trabalho havia o calor do ateliê, o cheiro pungente do ácido acético, as vozes altas...tinha que transpor tudo isto para o lugar de residência da imagem que buscava na chapa...
Daí, Julia, eu via na disciplina e na concentração em que me encontrava uma imagem difusa sempre presente...ao buscar a imagem que desejava tinha que passar por todas as outras coisas que reclamavam a atenção de meu corpo em trabalho...como Santo Agostinho que, buscando estar com Deus, afastava com a mão do espírito as outras imagens desejosas de atenção, eu me imaginava em outros lugares, mais amplos e frescos e estes lugares se desenhavam mais nitidamente a medida em que eu aproximava-me da impressão perfeita...a cada prova de estado, eu me sentia mais e mais abençoada por uma brisa fresca e por uma ausência de desejos corporais..nada me abalava ou perturbava. Estranhamente é ainda a mesma sensação que tenho quando deparo-me com os lugares fantásticos que encontro em algumas de minhas viagens..é como se a mesma brisa fresca estivesse esperando o momento de meu desejo para surgir..
Julia, neste primeiro comentário uma provocação: na disciplina dolorida e verdadeira do bailarino, da sua disciplina, nos ensaios e na preparação de tudo o que você descreve tão belamente: o que eu quero saber é se durante os exercícios , existe este lugar fantástico para onde a alma foge, longe do corpo fatigado? Este será o teatro da memória desejado, sempre pronto a aparecer quando invocado, o real lugar do artista?

Segundo comentário provocante: esquecer para lembrar. Na pagina 39, quando você escreve “ A memória e o esquecimento formam um par constante”.
Lendo o belo livro Lete - arte e crítica do esquecimento, deparei-me com a forte descrição que o autor faz de Primo Levi, levado para Auschwitz em 1943, aos 24 anos. Encarregado de distribuir a sopa no acampamento, tem como ajudante um jovem alsaciano de nome Jean, que desenvolve a desejosa arte de não chamar a atenção. Assim pode conversar longamente com Levi sobre Dante e faz a ele tantas perguntas sobre os sentidos da Commedia: o que significa contrapasso no inferno, quem fora Dante?, e assim Levi recita para Jean o canto 26 do Inferno, o grande discurso de Ulisses , traduzindo para o francês tão bem quanto pode. E assim , na sua recitatio Dantis e arrastando pelo campo um latão de sopa com “repolhos e nabos”, tem a súbita idéia de que a última viagem de Ulisses poderia muito bem ser uma imagem de sua própria situação no campo de extermínio. Então estes três versos passam por sua mente:
“Considerate la vostra semenza:
Fatti non foste a viver come bruti
Ma per seguir virtude e conoscenza.

Pensai na vossa semente:
Não fostes feitos para viver como os brutos,
Mas para perseguir virtude e conhecimento.

Para esquecer de sua situação no campo, recorda-se de Ulisses, que por sua vez o faz recordar de seu presente no campo e da miserável condição desumana. O esquecimento voluntário torna-se uma dor vívida e adensa seu sofrimento.
Julia, você diz que o bailarino deve também alimentar-se do esquecimento da dor física, da frustração e das outras sensações que conhece tão bem, sublimando-os para elevar o sentido da dança. Então será este esquecimento uma permanente disciplina da memória? Será a memória do dançarino o teatro da projeção e do esquecimento? E como é construído este teatro do esquecimento, se de cada coisa que la for colocada, lembrará o que se deve esquecer?

4 comments:

Anonymous said...

Mae... eu lembro do teatro em ouro preto: " Minha filha aproveita e corre escadinha acima e abre os braços, girando o corpo entre os finos cordéis de luz que nascem do alto"....
saudades... beijos

Anonymous said...

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