Monday, December 05, 2011
Monday, August 15, 2011
Tuesday, May 24, 2011
Bienal de Veneza e a pintura
Entre futuro e passado
pubblicata da Sebastião Miguel il giorno martedì 24 maggio 2011 alle ore 10.26
Inspirada na obra do pintor Tintoretto, Bienal de Veneza busca recuperar a dimensão histórica das artes plásticas
SILAS MARTÍ
DE SÃO PAULO
"La Creazione degli Animali", obra de Tintoretto
Não é a luz fria, racional, do minimalismo. É um farol dramático, teatral, que deve nortear a Bienal de Veneza, que começa em 4 de junho.
Se os brasileiros ficaram de fora da mostra principal, deixando espaço só para Artur Barrio -português radicado no Rio que vai ocupar o pavilhão do Brasil nos Giardini-, o resto da mostra tomou como lastro Tintoretto (1518-1594), artista que despontou em Veneza há nada menos que cinco séculos.
Bice Curiger, a curadora suíça que está à frente da mostra, decidiu buscar no artista do Maneirismo italiano uma dimensão histórica para a bienal, que é vitrine recorrente da vanguarda.
"Incluir um mestre do passado pode ser um pouco perigoso, já que podem interpretar isso como um resgate de valores ancestrais", diz Curiger em entrevista à Folha.
"Mas Tintoretto é um anticlássico, ele quebrou todas as regras do Renascimento." Quebrando as regras não escritas da Bienal, Curiger então decidiu ancorar uma seleção de jovens artistas (grande parte tem menos de 40 anos) em torno de três telas clássicas do pintor célebre por retratar a luz de Veneza, solar e estridente.
Não à toa, sua mostra se chama "ILUMInações", grafado assim mesmo, para destacar a luz das nações que mandam seus melhores artistas a cada dois anos para esse mesmo porto central.
Embora seja referência a poemas de Arthur Rimbaud (1854-1891) e ao famoso ensaio de Walter Benjamin (1892-1940) sobre o surrealismo, o nome quer ressaltar o lugar onde a mostra acontece: Veneza. Além disso, o título reafirma as representações nacionais de países que ainda têm na mostra italiana seus entrepostos de influência cultural dali para o mundo.
Curadora de Veneza quer "olhar para a história"
Para Bice Curiger, arte contemporânea se tornou autorreferente em excesso
Com maioria de artistas dos EUA e da Europa, seleção da Bienal foi criticada em redes sociais e publicações
"Tintoretto é um forasteiro em vários sentidos, ele é de outro século", explica a curadora da Bienal de Veneza deste ano, Bice Curiger, sobre a escolha do pintor de quase cinco séculos atrás como guia da mostra.
"Quando pensei na exposição, não queria algo ultracontemporâneo, como um disco voador que aterrissasse em Veneza. Não queria as pessoas navegando por esses canais como se fossem as ruas do Chelsea", diz.
Por mais distante que o bairro das galerias descoladas de Nova York pareça das vielas aquáticas de Veneza, os EUA emplacaram mais artistas que qualquer outro país entre os 82 nomes escolhidos por Bice Curiger. Também estão ali 40 europeus, o que levantou críticas a ela.
Em jornais, revistas e redes sociais, Curiger foi atacada pela seleção "conservadora", de nomões do eixo EUA-Europa, quase ignorando potências emergentes nas artes.
"Acabamos chegando a uma lista grande demais e decidimos cortar alguns nomes, tirando quem já tivesse participado da Bienal", disse Curiger. "Todos os brasileiros que me agradaram caíam nessa última categoria."
Estiveram na mostra principal da última Bienal de Veneza, por exemplo, obras de Cildo Meireles, Renata Lucas e Lygia Pape, esta última homenageada agora numa retrospectiva em Madri.
"Podia fazer uma exposição maior, mas eu não sou a única voz", diz Curiger.
Na própria mostra, ela destaca artistas como a dupla chinesa Birdhead, que faz uma espécie de diário fotográfico das transformações urbanas da China, as alemãs do Das Institut e a escultora irlandesa Rebecca Warren.
"Ela faz esculturas que lembram a história da arte de um jeito vibrante", diz sobre Warren. "Usa o material como uma câmara ecoica para inventar o novo a partir de velhas vozes."
De certa forma, é o que Curiger espera da exposição. Trata-se de transcender a contemporaneidade para além de reflexões sobre o passado recente, num mergulho mais profundo.
"Arte contemporânea é muito autorreferente, só volta até o modernismo e não cruza essa linha, que parece ser um tabu. É interessante olhar para a história, ou histórias, no plural. Essa é a minha proposta."
(SILAS MARTÍ)
pubblicata da Sebastião Miguel il giorno martedì 24 maggio 2011 alle ore 10.26
Inspirada na obra do pintor Tintoretto, Bienal de Veneza busca recuperar a dimensão histórica das artes plásticas
SILAS MARTÍ
DE SÃO PAULO
"La Creazione degli Animali", obra de Tintoretto
Não é a luz fria, racional, do minimalismo. É um farol dramático, teatral, que deve nortear a Bienal de Veneza, que começa em 4 de junho.
Se os brasileiros ficaram de fora da mostra principal, deixando espaço só para Artur Barrio -português radicado no Rio que vai ocupar o pavilhão do Brasil nos Giardini-, o resto da mostra tomou como lastro Tintoretto (1518-1594), artista que despontou em Veneza há nada menos que cinco séculos.
Bice Curiger, a curadora suíça que está à frente da mostra, decidiu buscar no artista do Maneirismo italiano uma dimensão histórica para a bienal, que é vitrine recorrente da vanguarda.
"Incluir um mestre do passado pode ser um pouco perigoso, já que podem interpretar isso como um resgate de valores ancestrais", diz Curiger em entrevista à Folha.
"Mas Tintoretto é um anticlássico, ele quebrou todas as regras do Renascimento." Quebrando as regras não escritas da Bienal, Curiger então decidiu ancorar uma seleção de jovens artistas (grande parte tem menos de 40 anos) em torno de três telas clássicas do pintor célebre por retratar a luz de Veneza, solar e estridente.
Não à toa, sua mostra se chama "ILUMInações", grafado assim mesmo, para destacar a luz das nações que mandam seus melhores artistas a cada dois anos para esse mesmo porto central.
Embora seja referência a poemas de Arthur Rimbaud (1854-1891) e ao famoso ensaio de Walter Benjamin (1892-1940) sobre o surrealismo, o nome quer ressaltar o lugar onde a mostra acontece: Veneza. Além disso, o título reafirma as representações nacionais de países que ainda têm na mostra italiana seus entrepostos de influência cultural dali para o mundo.
Curadora de Veneza quer "olhar para a história"
Para Bice Curiger, arte contemporânea se tornou autorreferente em excesso
Com maioria de artistas dos EUA e da Europa, seleção da Bienal foi criticada em redes sociais e publicações
"Tintoretto é um forasteiro em vários sentidos, ele é de outro século", explica a curadora da Bienal de Veneza deste ano, Bice Curiger, sobre a escolha do pintor de quase cinco séculos atrás como guia da mostra.
"Quando pensei na exposição, não queria algo ultracontemporâneo, como um disco voador que aterrissasse em Veneza. Não queria as pessoas navegando por esses canais como se fossem as ruas do Chelsea", diz.
Por mais distante que o bairro das galerias descoladas de Nova York pareça das vielas aquáticas de Veneza, os EUA emplacaram mais artistas que qualquer outro país entre os 82 nomes escolhidos por Bice Curiger. Também estão ali 40 europeus, o que levantou críticas a ela.
Em jornais, revistas e redes sociais, Curiger foi atacada pela seleção "conservadora", de nomões do eixo EUA-Europa, quase ignorando potências emergentes nas artes.
"Acabamos chegando a uma lista grande demais e decidimos cortar alguns nomes, tirando quem já tivesse participado da Bienal", disse Curiger. "Todos os brasileiros que me agradaram caíam nessa última categoria."
Estiveram na mostra principal da última Bienal de Veneza, por exemplo, obras de Cildo Meireles, Renata Lucas e Lygia Pape, esta última homenageada agora numa retrospectiva em Madri.
"Podia fazer uma exposição maior, mas eu não sou a única voz", diz Curiger.
Na própria mostra, ela destaca artistas como a dupla chinesa Birdhead, que faz uma espécie de diário fotográfico das transformações urbanas da China, as alemãs do Das Institut e a escultora irlandesa Rebecca Warren.
"Ela faz esculturas que lembram a história da arte de um jeito vibrante", diz sobre Warren. "Usa o material como uma câmara ecoica para inventar o novo a partir de velhas vozes."
De certa forma, é o que Curiger espera da exposição. Trata-se de transcender a contemporaneidade para além de reflexões sobre o passado recente, num mergulho mais profundo.
"Arte contemporânea é muito autorreferente, só volta até o modernismo e não cruza essa linha, que parece ser um tabu. É interessante olhar para a história, ou histórias, no plural. Essa é a minha proposta."
(SILAS MARTÍ)
Thursday, December 16, 2010
Wednesday, December 15, 2010
Como escrever catálogos de arte
COMO APRESENTAR UM CATÁLOGO DE ARTE
As anotações que se seguem valem como indicação para um apresentador de catálogos de arte (a quem passaremos a nos referir como ADC). Mas cuidado, elas não valem para a elaboração de um ensaio crítico-histórico para uma revista especializada, por vários e complexos motivos, o primeiro dos quais é que os ensaios críticos são lidos e julgados por outros críticos e raramente pelo artista analisado que, ou não assina a revista ou já faleceu há dois séculos. O contrário do que ocorre com os catálogos de arte contemporânea.
O que é preciso para tornar-se ADC? Infelizmente, muito pouco. Basta ter uma profissão intelectual (muito requisitados os físicos nucleares e os biólogos), possuir um telefone em seu nome e gozar de uma certa fama. A fama é calculada da seguinte maneira: ela deve ser, em extensão geográfica, superior à área de impacto da exposição (fama em nível de província, para cidadezinhas com menos de setenta mil habitantes, em nível nacional para capitais de região, em nível internacional para capitais de Estados soberanos, excluídos San Marino e Andorra) e, em profundidade, inferior à extensão dos conhecimentos culturais dos possíveis compradores dos quadros (caso se trate de uma exposição de paisagens dos Alpes estilo Segantini, não é necessário, mas sim prejudicial, escrever para o New Yorker, sendo mais oportuno ser diretor da escola normal local). Naturalmente é preciso ter sido contatado pelo artista que irá expor, mas este não é um problema: os artistas expositores contam-se em maior número do que os ADC em potencial. Dadas essas condições, é fatal a eleição para ADC, independentemente da vontade do potencial ADC. Se o artista fizer mesmo questão, o ADC em potencial não conseguirá furtar-se ao pedido, a menos que escolha emigrar para outro continente. Após ter aceito, o ADC terá, forçosamente, de reconhecer uma das motivações seguintes.
A) Corrupção (raríssima, pois, conforme se verá, há motivações menos dispendiosas). B) Correspondência sexual. C) Amizade: nas duas versões, de efetiva simpatia ou de impossibilidade de recusa. D) Presente de uma obra do artista (a motivação não coincide com o que se segue, ou seja, com a admiração pelo artista; de fato pode-se desejar receber quadros de presente com a finalidade de se constituir um fundo comerciável). E) Efetiva admiração pelo trabalho do artista. F) Desejo de associar seu próprio nome ao do artista: fabuloso investimento para jovens intelectuais, o artista se dará o trabalho de divulgar seus nomes em inúmeras bibliografias nos catálogos sucessivos, na pátria ou no estrangeiro. G) Interesses conjuntos quanto à ideologia, à estética ou ao comércio no desenvolvimento de uma corrente ou de uma galeria de arte. Este último é o ponto mais delicado, ao qual não pode furtar-se nem o ADC mais adamantinamen-te desinteressado. Com efeito, um crítico literário, de cinema ou de teatro, que exalte ou destrua a obra de que fala incide muito pouco sobre sua fortuna. O crítico literário, com uma boa resenha, pode fazer com que aumentem de poucas centenas de exemplares as vendas de um romance; o crítico de cinema pode acabar com uma pornochanchada sem impedir que ela proporcione astronômicos êxitos de bilheteria, o mesmo acontecendo com o crítico de teatro. O ADC, ao contrário, com sua intervenção, contribui para aumentar as cotações de toda a obra do artista, às vezes com saltos que vão de um a dez.
Essa circunstância caracteriza também a situação crítica do ADC: o crítico literário pode falar mal de um autor que ele talvez não conheça e que, de qualquer maneira (via de regra), não pode controlar a publicação do artigo num dado jornal; pelo contrário, o artista custeia e controla o catálogo. Mesmo quando diz ao ADC: "Seja sempre severo", a situação, de fato^ é insustentável. Ou se recusa, mas já se viu que isso é impossível, ou o único jeito é ser amável. Ou evasivo.
Eis por que, na medida em que o ADC quer salvar sua própria dignidade e a amizade para com o artista, ele é o fulcro dos catálogos de qualquer exposição.
Examinemos uma situação imaginária, a do pintor Pros-ciuttini, que há trinta anos pinta fundos ocre e por cima deles, no centro, um triângulo isósceles azul com a base paralela à borda sul do quadro, à qual se sobrepõe, em transparência, um triângulo escaleno vermelho, inclinado na direção sudeste em relação à base do triângulo azul.
O ADC deverá tomar nota do fato de que, conforme o período histórico, Prosciuttini terá intitulado o quadro, respectivamente, de 1950 a 1980: Composição, Dois mais infinito, E = Mc2, ALlende, Allende, o Chile não se rende, Lê Nom du Père, A/través, Privado. Quais são as possibilidades (honradas) de intervenção para o ADC? Fácil, se é um poeta: dedica uma poesia a Prosciuttini. Por exemplo: "como uma flecha -- (ai! Zenão cruel!) -- o ímpeto -- de outro dardo -- parasanga passada -- de um cosmo enfermo -- de orifícios negros -- multicor." A solução confere prestígio ao ADC, ao Prosciuttini, ao dono da galeria e ao comprador.
A segunda solução é reservada aos escritores, e assume a forma da carta aberta e solta: "Caro Prosciuttini, quando vejo seus triângulos sinto-me em Uqbar, Borges é testemunha . . . Um Pierre Ménard que me propõe formas recriadas em outras eras, dom Pitágoras da Mancha. Lascívias a cento e oitenta graus: poderemos libertar-nos da Necessidade? Era uma manhã de junho, no campo ensolarado: um guerrilheiro enforcado no poste do telefone. Adolescente, duvidei da essência da Regra. . ." Etcétera.
Mais fácil a tarefa de um ADC de formação científica. Ele pode partir da convicção (aliás exata) de que um quadro também é um elemento da Realidade: é suficiente, portanto, que fale de aspectos muito profundos da realidade e, qualquer que seja a coisa que venha a dizer, jamais será desmentido. Por exemplo: "Os triângulos de Prosciuttini são grafos. Funções proposicionais de topologias concretas. Nós. Como proceder de um nó U a outro nó? Precisa-se, conforme é sabido, de uma função F de avaliação, e se F(U) for menor ou igual a F(V), então será necessário desenvolver, para qualquer outro nó V considerado, U no sentido de gerar nós descendentes a partir dele. Uma perfeita função de avaliação poderá então satisfazer a condição F(U) ^ F t. V), tal que, se d((U, Q) é agora < d(V, Q), então, obviamente, d(A, B) é a distância entre A e B, no grafo. A arte é matemática. Essa é a mensagem de Prosciuttini."
À primeira vista poderia parecer que soluções do gênero sirvam para um quadro abstrato, mas não para um Morandi ou um Guttuso. Engano. Depende, é claro, da habilidade do homem de ciência. Como indicação genérica, diremos que hoje, usando com suficiente desenvoltura metafórica a teoria das catástrofes de René Thom, pode-se demonstrar que as naturezas-mortas de Morandi representam as formas sobre aquele extremo limiar de equilíbrio além do qual as formas naturais das garrafas se enrolariam em cúspide além e contra si próprias, rachando-se como cristal ofendido por ultra-som; e a magia do pintor consiste justamente em ter representado essa situação limite. Jogar com a tradução inglesa de natu-reza-morta: still life. Still, ainda por pouco, mas até quando? Still-Until. . . Magia da diferença entre ser ainda e ser-de-pois-do-quê.
Uma outra possibilidade existia em 1968 até, digamos, 1972. A interpretação política. Observações sobre a luta de classes, sobre a corrupção dos objetos conspurcados por sua transformação em mercadoria. A arte como revolta contra o mundo das mercadorias, triângulos de Prosciuttini como formas que recusam ser valores de troca, abertos à inventiva operária, expropriada pela rapina capitalista. Volta a uma idade de ouro, ou^ prenuncio de uma utopia, ou sonho de uma coisa.
Tudo o que foi dito até agora vale porém para o ADC que não é crítico de arte profissional. A situação do crítico de arte é, por assim dizer, mais crítica. Terá inevitavelmente que falar da obra, mas sem expressar juízos quanto a seu valor. A solução mais cômoda consiste em mostrar que o artista trabalhou em harmonia com a visão do mundo dominante, ou seja, como se diz hoje em dia, com a Metafísica Influente. Qualquer tipo de metafísica influente representa uma forma de dar a razão daquilo que existe. Um quadro pertence sem dúvida alguma às coisas que existem e de resto, por infame que seja, acaba também representando, de uma maneira ou de outra, o que existe (também um quadro abstrato representa aquilo que poderia existir ou que existe no universo das formas puras). Se, por exemplo, a metafísica influente sustenta que tudo que é nada mais é do que energia, dizer que o quadro de Prosciuttini é energia, e representa a energia, não é uma mentira: no máximo é o óbvio, mas um óbvio que salva o crítico e faz a felicidade de Prosciuttini, do dono da galeria e do comprador.
O problema consiste em saber reconhecer aquela metafísica influente de que todos, numa determinada época, ouvem falar, por motivos de popularidade. É claro que se pode sustentar com Berkeley que esse es t per ei pi e dizer que as obras de Prosciuttini são porque são percebidas; mas a metafísica em questão, não sendo muito influente, acabará fazendo com que Prosciuttini e os leitores se dêem conta da obviedade excessiva da afirmação.
Portanto, se os triângulos de Prosciuttini tivessem tido de ser representados no final da década de 50, jogando com a influência cruzada de Banfi-Pace e Sartre-Merleau-Ponty (em caso extremo, com o legado de Husserl), teria sido conveniente definir os ditos triângulos como "a representação do próprio ato do tencionar que, constituindo regiões eidé-ticas, faz das mesmas formas puras da geometria uma modalidade da Lebenswelt". Sendo permitidas, naquela época, também as variações em termos de psicologia da forma: dizer que os triângulos de Prosciuttini têm uma pregnância "ges-táltica" teria sido irrefutável, visto que todo triângulo, se é reconhecível como triângulo, tem uma pregnância "ges-táltica". Nos anos 60 Prosciuttini teria parecido mais up to date se tivesse sido vista, em seus triângulos., uma estrutura homóloga ao pattern das estruturas de parentesco de Lévi-Strauss. Querendo jogar entre estruturalismo e Sessenta e Oito, podia-se dizer que, de acordo com a teoria da contradição de Mão, a qual representa a mediação da tríade hegeliana pelos princípios binários do Yin e do Yang, os dois triângulos de Prosciuttini evidenciavam a relação entre contradição primária e contradição secundária. Não se creia que o módulo estruturalista não se pudesse aplicar também às garrafas de Morandi: garrafa profunda (deep bottle) contra garrafa de superfície.
Mais livres as opções do crítico após os anos 70. Naturalmente o triângulo azul atravessado pelo triângulo vermelho é a epifania de um Desejo que persegue um Outro, com que jamais poderá identificar-se. Prosciuttini é o pintor da Diferença, ou melhor, da Diferença na Identidade. A diferença na identidade encontra-se também na relação "cara-coroa" numa moeda de cem liras, mas os triângulos de Prosciuttini se prestariam igualmente para que neles fosse ré-conhecido um caso de Implosão, como, por sinal, também nos quadros de Pollock e na introdução de supositórios por via anal (orifícios negros). Nos triângulos de Prosciuttini há, contudo, também a anulação recíproca de valor de uso e de valor de troca. Com uma referência matreira à Diferença do sorriso da Gioconda, que visto de viés dá-se a perceber como uma vulva e, de qualquer maneira, é béance, os triângulos de Prosciuttini poderiam, em sua mútua anulação e rotação "catastrófica", aparecer como a implosividade do falo que se faz vagina dentada. A falha do Falo. Em suma, e para concluir, a regra áurea para o ADC é descrever a obra de modo que a descrição, "além de a outros quadros, possa se aplicar também à sensação que se tem voltando de uma vitrine de frios. Se o ADC escrever: "Nos quadros de Pros-ciuttini a percepção das formas nunca é inerte adequação aos dados da sensação. Prosciuttini nos diz que não existe percepção que não seja interpretação e trabalho, e a passagem do sentido ao percebido é atividade, práxis, ser-no-mun-do como construção de Absattungen recortadas intencionalmente na polpa mesma da coisa-em-si", o leitor reconhece a verdade de Prosciuttini porque corresponde aos mecanismos baseados nos quais, na loja de frios, ele distingue uma mortadela de uma salada russa.
O que estabelece, além de um critério de factibilidade e eficácia, também um critério de moralidade: basta dizer a verdade. Claro que há modos e modos.
L'Espresso, 3 de agosto de 1980
As anotações que se seguem valem como indicação para um apresentador de catálogos de arte (a quem passaremos a nos referir como ADC). Mas cuidado, elas não valem para a elaboração de um ensaio crítico-histórico para uma revista especializada, por vários e complexos motivos, o primeiro dos quais é que os ensaios críticos são lidos e julgados por outros críticos e raramente pelo artista analisado que, ou não assina a revista ou já faleceu há dois séculos. O contrário do que ocorre com os catálogos de arte contemporânea.
O que é preciso para tornar-se ADC? Infelizmente, muito pouco. Basta ter uma profissão intelectual (muito requisitados os físicos nucleares e os biólogos), possuir um telefone em seu nome e gozar de uma certa fama. A fama é calculada da seguinte maneira: ela deve ser, em extensão geográfica, superior à área de impacto da exposição (fama em nível de província, para cidadezinhas com menos de setenta mil habitantes, em nível nacional para capitais de região, em nível internacional para capitais de Estados soberanos, excluídos San Marino e Andorra) e, em profundidade, inferior à extensão dos conhecimentos culturais dos possíveis compradores dos quadros (caso se trate de uma exposição de paisagens dos Alpes estilo Segantini, não é necessário, mas sim prejudicial, escrever para o New Yorker, sendo mais oportuno ser diretor da escola normal local). Naturalmente é preciso ter sido contatado pelo artista que irá expor, mas este não é um problema: os artistas expositores contam-se em maior número do que os ADC em potencial. Dadas essas condições, é fatal a eleição para ADC, independentemente da vontade do potencial ADC. Se o artista fizer mesmo questão, o ADC em potencial não conseguirá furtar-se ao pedido, a menos que escolha emigrar para outro continente. Após ter aceito, o ADC terá, forçosamente, de reconhecer uma das motivações seguintes.
A) Corrupção (raríssima, pois, conforme se verá, há motivações menos dispendiosas). B) Correspondência sexual. C) Amizade: nas duas versões, de efetiva simpatia ou de impossibilidade de recusa. D) Presente de uma obra do artista (a motivação não coincide com o que se segue, ou seja, com a admiração pelo artista; de fato pode-se desejar receber quadros de presente com a finalidade de se constituir um fundo comerciável). E) Efetiva admiração pelo trabalho do artista. F) Desejo de associar seu próprio nome ao do artista: fabuloso investimento para jovens intelectuais, o artista se dará o trabalho de divulgar seus nomes em inúmeras bibliografias nos catálogos sucessivos, na pátria ou no estrangeiro. G) Interesses conjuntos quanto à ideologia, à estética ou ao comércio no desenvolvimento de uma corrente ou de uma galeria de arte. Este último é o ponto mais delicado, ao qual não pode furtar-se nem o ADC mais adamantinamen-te desinteressado. Com efeito, um crítico literário, de cinema ou de teatro, que exalte ou destrua a obra de que fala incide muito pouco sobre sua fortuna. O crítico literário, com uma boa resenha, pode fazer com que aumentem de poucas centenas de exemplares as vendas de um romance; o crítico de cinema pode acabar com uma pornochanchada sem impedir que ela proporcione astronômicos êxitos de bilheteria, o mesmo acontecendo com o crítico de teatro. O ADC, ao contrário, com sua intervenção, contribui para aumentar as cotações de toda a obra do artista, às vezes com saltos que vão de um a dez.
Essa circunstância caracteriza também a situação crítica do ADC: o crítico literário pode falar mal de um autor que ele talvez não conheça e que, de qualquer maneira (via de regra), não pode controlar a publicação do artigo num dado jornal; pelo contrário, o artista custeia e controla o catálogo. Mesmo quando diz ao ADC: "Seja sempre severo", a situação, de fato^ é insustentável. Ou se recusa, mas já se viu que isso é impossível, ou o único jeito é ser amável. Ou evasivo.
Eis por que, na medida em que o ADC quer salvar sua própria dignidade e a amizade para com o artista, ele é o fulcro dos catálogos de qualquer exposição.
Examinemos uma situação imaginária, a do pintor Pros-ciuttini, que há trinta anos pinta fundos ocre e por cima deles, no centro, um triângulo isósceles azul com a base paralela à borda sul do quadro, à qual se sobrepõe, em transparência, um triângulo escaleno vermelho, inclinado na direção sudeste em relação à base do triângulo azul.
O ADC deverá tomar nota do fato de que, conforme o período histórico, Prosciuttini terá intitulado o quadro, respectivamente, de 1950 a 1980: Composição, Dois mais infinito, E = Mc2, ALlende, Allende, o Chile não se rende, Lê Nom du Père, A/través, Privado. Quais são as possibilidades (honradas) de intervenção para o ADC? Fácil, se é um poeta: dedica uma poesia a Prosciuttini. Por exemplo: "como uma flecha -- (ai! Zenão cruel!) -- o ímpeto -- de outro dardo -- parasanga passada -- de um cosmo enfermo -- de orifícios negros -- multicor." A solução confere prestígio ao ADC, ao Prosciuttini, ao dono da galeria e ao comprador.
A segunda solução é reservada aos escritores, e assume a forma da carta aberta e solta: "Caro Prosciuttini, quando vejo seus triângulos sinto-me em Uqbar, Borges é testemunha . . . Um Pierre Ménard que me propõe formas recriadas em outras eras, dom Pitágoras da Mancha. Lascívias a cento e oitenta graus: poderemos libertar-nos da Necessidade? Era uma manhã de junho, no campo ensolarado: um guerrilheiro enforcado no poste do telefone. Adolescente, duvidei da essência da Regra. . ." Etcétera.
Mais fácil a tarefa de um ADC de formação científica. Ele pode partir da convicção (aliás exata) de que um quadro também é um elemento da Realidade: é suficiente, portanto, que fale de aspectos muito profundos da realidade e, qualquer que seja a coisa que venha a dizer, jamais será desmentido. Por exemplo: "Os triângulos de Prosciuttini são grafos. Funções proposicionais de topologias concretas. Nós. Como proceder de um nó U a outro nó? Precisa-se, conforme é sabido, de uma função F de avaliação, e se F(U) for menor ou igual a F(V), então será necessário desenvolver, para qualquer outro nó V considerado, U no sentido de gerar nós descendentes a partir dele. Uma perfeita função de avaliação poderá então satisfazer a condição F(U) ^ F t. V), tal que, se d((U, Q) é agora < d(V, Q), então, obviamente, d(A, B) é a distância entre A e B, no grafo. A arte é matemática. Essa é a mensagem de Prosciuttini."
À primeira vista poderia parecer que soluções do gênero sirvam para um quadro abstrato, mas não para um Morandi ou um Guttuso. Engano. Depende, é claro, da habilidade do homem de ciência. Como indicação genérica, diremos que hoje, usando com suficiente desenvoltura metafórica a teoria das catástrofes de René Thom, pode-se demonstrar que as naturezas-mortas de Morandi representam as formas sobre aquele extremo limiar de equilíbrio além do qual as formas naturais das garrafas se enrolariam em cúspide além e contra si próprias, rachando-se como cristal ofendido por ultra-som; e a magia do pintor consiste justamente em ter representado essa situação limite. Jogar com a tradução inglesa de natu-reza-morta: still life. Still, ainda por pouco, mas até quando? Still-Until. . . Magia da diferença entre ser ainda e ser-de-pois-do-quê.
Uma outra possibilidade existia em 1968 até, digamos, 1972. A interpretação política. Observações sobre a luta de classes, sobre a corrupção dos objetos conspurcados por sua transformação em mercadoria. A arte como revolta contra o mundo das mercadorias, triângulos de Prosciuttini como formas que recusam ser valores de troca, abertos à inventiva operária, expropriada pela rapina capitalista. Volta a uma idade de ouro, ou^ prenuncio de uma utopia, ou sonho de uma coisa.
Tudo o que foi dito até agora vale porém para o ADC que não é crítico de arte profissional. A situação do crítico de arte é, por assim dizer, mais crítica. Terá inevitavelmente que falar da obra, mas sem expressar juízos quanto a seu valor. A solução mais cômoda consiste em mostrar que o artista trabalhou em harmonia com a visão do mundo dominante, ou seja, como se diz hoje em dia, com a Metafísica Influente. Qualquer tipo de metafísica influente representa uma forma de dar a razão daquilo que existe. Um quadro pertence sem dúvida alguma às coisas que existem e de resto, por infame que seja, acaba também representando, de uma maneira ou de outra, o que existe (também um quadro abstrato representa aquilo que poderia existir ou que existe no universo das formas puras). Se, por exemplo, a metafísica influente sustenta que tudo que é nada mais é do que energia, dizer que o quadro de Prosciuttini é energia, e representa a energia, não é uma mentira: no máximo é o óbvio, mas um óbvio que salva o crítico e faz a felicidade de Prosciuttini, do dono da galeria e do comprador.
O problema consiste em saber reconhecer aquela metafísica influente de que todos, numa determinada época, ouvem falar, por motivos de popularidade. É claro que se pode sustentar com Berkeley que esse es t per ei pi e dizer que as obras de Prosciuttini são porque são percebidas; mas a metafísica em questão, não sendo muito influente, acabará fazendo com que Prosciuttini e os leitores se dêem conta da obviedade excessiva da afirmação.
Portanto, se os triângulos de Prosciuttini tivessem tido de ser representados no final da década de 50, jogando com a influência cruzada de Banfi-Pace e Sartre-Merleau-Ponty (em caso extremo, com o legado de Husserl), teria sido conveniente definir os ditos triângulos como "a representação do próprio ato do tencionar que, constituindo regiões eidé-ticas, faz das mesmas formas puras da geometria uma modalidade da Lebenswelt". Sendo permitidas, naquela época, também as variações em termos de psicologia da forma: dizer que os triângulos de Prosciuttini têm uma pregnância "ges-táltica" teria sido irrefutável, visto que todo triângulo, se é reconhecível como triângulo, tem uma pregnância "ges-táltica". Nos anos 60 Prosciuttini teria parecido mais up to date se tivesse sido vista, em seus triângulos., uma estrutura homóloga ao pattern das estruturas de parentesco de Lévi-Strauss. Querendo jogar entre estruturalismo e Sessenta e Oito, podia-se dizer que, de acordo com a teoria da contradição de Mão, a qual representa a mediação da tríade hegeliana pelos princípios binários do Yin e do Yang, os dois triângulos de Prosciuttini evidenciavam a relação entre contradição primária e contradição secundária. Não se creia que o módulo estruturalista não se pudesse aplicar também às garrafas de Morandi: garrafa profunda (deep bottle) contra garrafa de superfície.
Mais livres as opções do crítico após os anos 70. Naturalmente o triângulo azul atravessado pelo triângulo vermelho é a epifania de um Desejo que persegue um Outro, com que jamais poderá identificar-se. Prosciuttini é o pintor da Diferença, ou melhor, da Diferença na Identidade. A diferença na identidade encontra-se também na relação "cara-coroa" numa moeda de cem liras, mas os triângulos de Prosciuttini se prestariam igualmente para que neles fosse ré-conhecido um caso de Implosão, como, por sinal, também nos quadros de Pollock e na introdução de supositórios por via anal (orifícios negros). Nos triângulos de Prosciuttini há, contudo, também a anulação recíproca de valor de uso e de valor de troca. Com uma referência matreira à Diferença do sorriso da Gioconda, que visto de viés dá-se a perceber como uma vulva e, de qualquer maneira, é béance, os triângulos de Prosciuttini poderiam, em sua mútua anulação e rotação "catastrófica", aparecer como a implosividade do falo que se faz vagina dentada. A falha do Falo. Em suma, e para concluir, a regra áurea para o ADC é descrever a obra de modo que a descrição, "além de a outros quadros, possa se aplicar também à sensação que se tem voltando de uma vitrine de frios. Se o ADC escrever: "Nos quadros de Pros-ciuttini a percepção das formas nunca é inerte adequação aos dados da sensação. Prosciuttini nos diz que não existe percepção que não seja interpretação e trabalho, e a passagem do sentido ao percebido é atividade, práxis, ser-no-mun-do como construção de Absattungen recortadas intencionalmente na polpa mesma da coisa-em-si", o leitor reconhece a verdade de Prosciuttini porque corresponde aos mecanismos baseados nos quais, na loja de frios, ele distingue uma mortadela de uma salada russa.
O que estabelece, além de um critério de factibilidade e eficácia, também um critério de moralidade: basta dizer a verdade. Claro que há modos e modos.
L'Espresso, 3 de agosto de 1980
Friday, May 14, 2010
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